de Ílhavo a Oeiras passando por Moçambique
um blog de Manuel Machado da Graça, onde se vão publicando textos e gravuras que ele nos deixou, fotos e outras recordações.
Acerca de mim
- Nome: Cine-clube Komba Kanema
- Localização: Maputo, Mozambique
quarta-feira, agosto 29, 2007
Senhora das Dores
SENHORA DAS DORES
Piadas sem piada e que não ofendem.
A tarde ia em meio. O sol queimava;
E da estrada,
Tanta nuvem de pó se levantava,
Que se não via nada.
A tarde era calmosa e estival,
E nem a brisa
Em nós se faz sentir. Por nosso mal,
Tivemos d’ir em mangas de camisa.
xxx
Emfim cheguei. A quinta ‘stá animada
E já grupos se veem a manjar
A merenda frugal, mas bem regada
Qu’em casa prepararam p’ra levar
Há menino, por lá, que resolvido
Vai a provar de todos os farneis.
Assim, dum deles, furta algum cosido
E a outro vai roubar alguns pasteis.
A mim também me deu a maluqueira
(Não quero que digam que de mim não falo)
De andar mais outro um’hora quasi inteira
À procura de um galo.
Quando demos c’o grupo possuidor
De tão belo manjar,
Nem um ôsso do galo tentador
Havia p’ra tragar.
Não sei porque razão e porque fado
O Amadeu, esse rapaz tão belo,
Se achou na festa tão apoquentado
C’uma pertinaz dôr de cotovelo.
O Landrú quando veio lá de Aveiro,
(E eu digo isto, por não ser segredo)
Por nada existir já do merendeiro,
Pôz-se a chuchar no dêdo.
O Grilo conta histórias com piada.
A Frasquita e a Mi desejam ter
As bolsas e a carteira recheada
De dinheiro a valer.
Não sei s’acham bonita ou engraçada
S’acham mesmo alguma piadinha
À frase da Mimi, tão costumada:
“Riam-se. Ora vêjam! Que gracinha!
XXX
Eu sinto agora tal melancolia,
E sinto mesmo uma tristeza infinda
Ao pensar que p’ra vir tão belo dia
Eu tenho de esperar um ano ainda.
FORASTEIRO
Beira-Mar, 24/4/927
sábado, agosto 25, 2007
SONETOS
O primeiro é a despedida do quarto onde viveu em Coimbra no seu ano de caloiro.
A DESPEDIDA
É ser ingrato, talvez, deixar-te agora
Quando já estava tão habituado
Mas tem de ser, amigo. É o meu fado,
Que m´ obriga a sair daqui p´ra fora.
Adeus ó quarto. Adeus que vou-me embora.
Vou deixar-te sozinho, abandonado,
Talvez que alegre, e talvez torturado
A pensar no futuro a toda a hora.
Passei aqui um ano ou quasi um ano,
Sonhando à noite belos sonhos d´ oiro.
Passei o tempo bem sem algum dano.
Não te desejo, ó quarto, um mau agoiro
Pois não era decerto muito humano
Desejá-lo ao meu quarto de caloiro.
Coimbra 1/7/927
O MESTRE
O mestre é o papão negro dos rapazes
Que passam sua vida a estudar,
E é porque não são disso capazes,
Senão depressa os punham a cavar.
Contra ele são os ditos mais mordazes
Que se possam no Lexicon achar,
São uns entes tão diferentes que as pazes
Entre eles, nunca mais se podem dar.
Parece verem o mestre contente
Quando algum se está esticando
Tendo da cólica, a dor mais pungente.
Por isso ouvi dizer, já não sei quando:
Acabem-se c´os mestres de repente,
Pois são no mundo, o crime mais nefando.
Braga, 6/7/926
O EXAME
Hav´rá coisa mais chata que o exame
P´ra quem não sabe dele patavina?
Que não estudou nenhuma disciplina
Ou outra coisa qu´assim também se chama?
Não. Não há coisa que menos se grame
E que aos cábulas seja tão mofina,
Do que essa tão reles sabatina
À qual o burro douto chama exame.
É no seu tempo qu´a cólica aperta
Fazendo-nos andar de diarreia,
Por parecer-nos ter a gata certa.
A gata, essa bichana qu´é tão feia
E contra a qual é preciso andar alerta
Pois é o que mais o cábula receia.
Braga, 24/7/1926
COIMBRA
Hoje vão uns versos sobre Coimbra, cidade que muito o marcou. Foram feitos em 1954, para qualquer acontecimento da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, em Lourenço Marques, mas referem-se a lugares e pessoas dos seus tempos de estudante e, portanto, não parece descabido colocá-los aqui.
COIMBRA
Coimbra, terra jardim,
Nas tuas ruas se encobre
A sombra de António Nobre,
A sombra de Bernardim.
Coimbra do Pad´Zé!
Coimbra do Carminé!
Coimbra! Foram tão pródigos
Os Deuses para contigo!
Coimbra de D.Dinis
Com seus cantares de amigo;
Do “Pirata Joaquim”
Com os seus famosos “códigos”,
E do “Osso” e do “Dim-Dim”...
Que figuras tão gentis
Criadas p´ra teu adorno!
Que saudade tão amarga
Eu sinto no coração
Do Roxo, da Rua Larga,
Do Bento, da São João,
E da célebre pensão
“Marquinhas do Leite Morno”.
Ai Coimbra dos Choupais,
Dos Choupais das serenatas
E de muita coisa mais
Que não digo e se adivinha
E findavam em festatas
Duma beleza profunda,
Afogadas na pinguinha
Da tasca da “Cova Funda”
Do famoso “Carequinha”.
Coimbra da boa gente,
Com tão belo coração,
Desde o Favas ao Paixão,
Que de forma comovente
Nos livravam dos apuros
Com tão “pequeninos” juros.
Coimbra da simpatia
Do Neves da Livraria
Que com mil salamaleques
Conosco a todo o momento,
Trocava os vales e cheques
Com lucros de dois por cento.
Coimbra, terra poeta,
Coimbra do “Caganeta”
Que a gente agora recorda
Dedilhando a sua trova
Nos instrumentos de corda
Do sino grande e sineta
Do carrilhão da Sé Nova.
Coimbra do “Calmeirão”
Que marcava as contradanças
Nas “fogueiras” e festanças
Da noite de São João,
Com um jeito tão notório,
Com maneiras tão “gentis”
A frases tão “subtis”
Do seu vasto reportório.
Coimbra a bela cidade
De paisagens tão bucólicas
Que tantas vezes cantámos.
Coimbra, terra das cólicas
Nos “actos” da Faculdade,
Onde o “Abólio”, o bedel,
Com um sorriso de mel
Dizia que reprovámos.
Coimbra, cidade –prenda
Dentro em teu seio, ao abrigo
Da velha Univercidade
Quem há que te não entenda?
Coimbra, terra de lenda,
Nós ´stamos hoje contigo
Em espírito, em saudade.
Lourenço Marques, Maio de 1954