de Ílhavo a Oeiras passando por Moçambique

um blog de Manuel Machado da Graça, onde se vão publicando textos e gravuras que ele nos deixou, fotos e outras recordações.

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Localização: Maputo, Mozambique

terça-feira, janeiro 16, 2007

Telhados


Publicamos hoje um texto escrito e ilustrado (gravuras em madeira) por MMG.


TELHADOS DAS CASAS
por Machado Graça

Coisas há, e factos que, tendo-nos passado despercebidos como banais se nos afiguram em certo momento com uma tal importância, de tal modo se nos prendem ao espírito, que somos obrigados a ceder-lhe uma grande parte do nosso pensar, e nos leva, por vezes, na sua forma e no seu modo de ser, a vermos-lhe algo de interesse e inédito.
A todos acontece descobrir no objecto mais usual uma particularidade, às vezes notória que lhe não havia visto.
Um pouco de atenção e de interesse fez a descoberta.
Poderia citar factos, mas eles são tantos e tão variados que decerto já a todos se tornaram notados.
Ora foi num destes momentos de atenção que adveem - estranho paradoxo - precisamente quando os nossos sentidos alheados de tudo se obrigam a pouco e pouco a atentar no objecto que os olhos fixam, que descobri nos Telhados das Casas coisas que me tinham passado despercebidas.

xXx

Telhados das Casas ! ...
Mas que nos irá dizer dos telhados das casas que nós já não saibamos, dirá quem ler o título desta crónica.
Estou certo, porêm, que do alto de um telhado apreciando muitos telhados e comparando-os - e vale a comparação - aos homens no seu viver, a todos quantos me lêm sugeriam as frases, as ideias e os pensamentos que eu tive quando há dias olhei para eles com olhos de ver.
Senão reparem. Subam comigo e reparem.
Olhem aquele telhado alto, erguendo-se com sobranceria sobre todos os outros, que se agacham em seu derredor
Olhando-o parece-me estar a ver o seu dono, metido num chapéu alto - o chapéu alto que foi de comendadores e que agora os cocheiros regeitam por bota de elástico - falando ao povo, àquilo que ele chamará o seu povo com um certo ar superior.
Este mais perto, relusente na sua capa nova, capa vermelha de cerâmica marselhesa, que parece ter-se escovado a um espelho para uma soiree , taful e vaidoso, senhor do seu nariz - um nariz bem feito, que ele ostenta no seu cimo, cheirando ainda à Fábrica. É um telhado novo, sem a experiência da vida.
Pelo contrário aquele ali ao lado. Tão alquebrado, com uma corcôva nas costas - a empena já empenada com o peso dos anos - que os anos também pesam como qualquer carga - espera resignado seu último momento num sorriso de velho desdentado, mas onde vai muita ironia quando olha o seu vizinho da frente, muito vaidoso no seu fato que ele impõe como novo, mas que na sua cor desbotada mostra bem a sua proveniência. Foi virado e foi com muito suor que lhe tiraram as nódoas de que o tempo o encheu.
Reparem também na covardia dos telhados pequenos, agachados, como que a esconder-se por detraz dos seus vizinhos mais altos que, senhores do seu poder, escorrem para eles toda a porcaria de que a chuva os livra em dia de limpeza e que vendo-os submissos e medrosos, lhes põem os pés no pescoço.
Há-os também - velhos gaiteiros - todos cheios de arrebiques, encobrindo a sua velhice por sob toda a qualidade de enfeites e pinturas. Fechem por um pouco os olhos e verão, como eu vejo, numa sobreposição cinematográfica, aparecer-lhes na frente um velho, de cabelo pintado, e face tratada, ostentando na lapela uma orquídea branca, num papo-sequismo serôdio de quem se enfeita para aventuras amorosas.
Também vejo, e comigo os verá quem quiser vê-los, alguns telhados desleixados e porcos, não curando de por remendos nos buracos que o tempo abriu nas suas gastas farpelas.
Sobranceiro àquele em forma de minarete, vejo um pobrezinho, de manto esburacado e falta de botões, carregado de filhos - pequenos telhadinhos que se lhe agarram às abas do esburacado manto - parece que parou em frente do telhado minarete - todo ancho na sua riquesa, mãos no côvo do colete - como que a pedir-lhe uma esmola, expondo para lhe provocar a piedade, o seu rancho de telhadinhos pequeninos que, rotos e desmantelados, se lhe agarram às abas do seu manto esburacado.
E os mirantes. olhos abertos para tudo, bisbilhotando, como que falando para os mirantes fronteiros, da vida dos outros mirantes mais longe. O soalheiro a que a sua posição os obriga todo o dia torna-os assim. São um produto do meio em que vivem.
Há telhados que ostentam claras-boias - olhos de gigantes a que a miopia ou um ridículo dandismo faz usar monóculo.
Aquele lá ao fundo, magestoso na sua grandesa e forma, ameiado, e a que faltam já algumas ameias, - riso desdentado de caveira, - com buracos que nos mostram o forro, fazem-me lembrar os fidalgos arruinados, que muito senhores das suas ideias, adoram ainda o seu rei e gastam em seu favor os magros cofres.
Há-os identicos a estes na forma, mas ostentando uma capa vermelha de telha marselhesa e com ornatos modernos. São os que se democratisaram, os que transigiram com as ideias do tempo.

xXx

Concordem agora comigo. Igualem, como eu igualei, esse conjunto de tantos telhados, de tantas e tão variadas formas e estados, a um grupo heterogénio de homens, onde, como nos telhados nós vemos os vaidosos, os modestos, aqueles que se apresentam garridamente vestidos, os que usam fatos virados, os covardes, os medrosos, de todas as qualidades, enfim.
Para mais semelhança, ainda, comparei os telhados aos homens politicamente, pois como digo acima os há firmes nas suas ideias - sem querer dizer que os telhados têm ideias, pois que o mais que têm é...telha - e os que transigem com a ideia moderna, que...aderem.
E agora depois de todo este arrasoado, vereis se eu tinha ou não tinha que dizer dos telhados das casas e reparareis que foi extemporânia a vossa admiração ao ler o título desta página.